CASSIANO RICARDO - POETA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS

São José dos Campos, 28 de Setembro de 2015.


   Há muito tempo, há muitos anos, desde a infância, tive contato com os poemas de Cassiano Ricardo (jornalista, poeta e ensaísta, nasceu em São José dos Campos, SP, em 26 de julho de 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 14 de janeiro de 1974) porém, talvez nunca tenha mergulhado com profundidade em suas palavras e compreendido a densidade e magnitude pulsante em suas obras. Talvez esse seja o motivo de não ter ficado tão impressionado, encantado, extasiado, com a força de seus poemas, como me encontro neste momento. Num misto de paixão, devoção e desejo de mais e mais devorar seus textos. Há algo de muito vivo não só nas palavras, mas nas entre linhas. 

   Sinto a necessidade de compartilhar esse tesouro, como quem divide um brinquedo novo. Comungar de cada ação viva que está contida na palavra e brindar junto a dois, a três, com muitos. Vamos tomar sem pressa, aos poucos, sentindo todo aroma e sabor contido em cada poema.
Adrianno Rodrigues

Imagem: Mirror, de Tigran Tsitoghdzyan.



CASSIANO RICARDO


O fogo e as três cores


Não amo o eterno desassossego do mar.

Amo o campo, que é o meu mar quieto com as suas

ondas igualmente quietas.


(Não sei por que se fala em biologia oficial com intervenção

cirúrgica para as supra-renais a fim de tornar os homens

menos belicosos,
se há o campo)



Pois não é o campo que nos infiltra a paz no corpo

e ensina a doce esperança aos mais impacientes?



Vê esta árvore, que nos dá sombra e frutos

querendo abraçar-nos com as suas centenas de braços

verdes e amorosos.
Ouve o regato que murmura uma ode anacreôntica
e em cuja margem ninguém pensa em chorar mas só
em caçar borboletas.



Olha os bois tranqüilos que abdicaram de sua força

bravia,

para serem resignados e mansos.


Ouve o cantar do galo que é o jornal vivo da aurora

e dos pássaros — ia me esquecendo dos pássaros —

que só faltam vir pousar na palma de nossa mão.
Sente o húmus da terra revolvida de fresco
para as plantações
e respira este cheiro agreste de raízes,
o ama o campo.



O campo, onde se volta a ser simples.

O campo onde o que existe é uma camaradagem bíblica

do homem com os animais e com a paisagem.


E uma borboleta branca virá pousar em teu braço.

E beberás leite de democracia.



E ficarás lírico, capaz de todos os bons pensamentos.

Ah, o momento elementar em que me despojo de tudo

e só amo a água, o fogo e as três cores.



Rio-menino


  

Todo regato é água criança.

É rio que ainda se conserva menino. . .
Por isso que corre mato e não se cansa
de brincar com o seu próprio destino.



Todo regato é água criança.

E todo gato é onça pequena.

Todo lagarto é jacaré que não cresceu.
E todo periquito é papagaio que mudou pena
antes de ficar homem
porque achou mais bonito ficar periquito
e também não cresceu.



Assim é você,

meu regato canoro,

meu rio garoto
que nunca não pára
de correr pelo mundo
apostando corrida
com os outros regatos
pra ver quem consegue
chegar em primeiro lugar
ao encontro de todos
os meninos regatos
que correm da terra
pro mar!



Um ipê joga flores

à sua passagem.

Uma ave comprida
lhe diz: Boa viagem!



Saiam todos da frente

que eu quero passar!

Tomei as botas a um gigante
bandeirante
pra chegar em primeiro lugar.



Tudo pela alegria

de ser menino,

de não parar um só minuto
no seu destino



tudo pela alegria

de brincar,

de cantar,
de correr,
de ser madrugador como todas as aves,
de não ter nada em que pensar,
de não ter tempo pra pensar em coisas graves;
e de nunca parar através da corrida
de encontro a essa coisa horrorosa
que é o sentido profundo da vida!



Tudo pela alegria

de passar pela terra

desfeito em risadas de espuma
sem o gosto parado da imagem
tão próprio dos rios profundos
que pintam quadros e figuras
com a tinta de sol da paisagem
no remanso da tarde amarela
e que têm tempo pra repousar no caminho
e de fazer durante a viagem
as mais bonitas exposições de aquarela. . .



Ah! os rios enormes que não matam a sede

e nos quais os homens já jogaram o lixo

das suas mágoas misturadas com as águas.
Águas velhas, que vieram de longe. . .
e que se vão cansadas em caminho do mar.



Só se sabe que não estão paradas porque as folhas

que lhes caíram na soturna superfície

vão caminhando devagar, tão devagar
como se caminhassem simplesmente pra constar.



E você, meu regato canoro,

é a correnteza natural da hora presente.



Saiam todos da frente

que eu quero passar!

Tomei as botas a um gigante
bandeirante
pra chegar em primeiro lugar!



A flauta que me roubaram


Era em S. José dos Campos.

E quando caía a ponte

eu passava o Paraíba
numa vagarosa balsa
como se dançasse valsa.
O horizonte estava perto.
A manhã não era falsa
como a da cidade grande.
Tudo era um caminho aberto.
Era em S. José dos Campos
no tempo em que não havia
comunismo nem fascismo
pra nos tirarem o sono.
Só havia pirilampos
imitando o céu nos campos.
Tudo parecia certo.
O horizonte estava perto.



Havia erros nos votos

mas a soma estava certa.

Deus escrevia direito
por pequenas ruas tortas.
A mesa era sempre lauta.
Misto de sabiá e humano
o vizinho acordava
tranqüilo, tocando flauta.
Era em S. José dos Campos.
O horizonte estava perto.
Tudo parecia certo
admiravelmente certo.




A manhã de penacho vermelho


A terra era feita de sol;
cada índio trazia na fronte
enfeitada de pluma vermelha
uma larga coroa de sol.


À sombra de altivas palmeiras

caciques contavam seus feitos

tocando boré no rumor da pocema,
tomando cauim nas festanças da taba:
heróis de coroa e de tanga,
com flechas de sol na uiraçaba
andavam caçando onças brabas
e papagaios decorativos.



Um cheiro de moita orvalhada 

fazia pensar em goiaba e pitanga.



O mato, borrado de flores,

promovia uma enorme algazarra de cores.

A própria terra era a ilusão festiva
de que um dia de fogo bravo amanhecia
no vermelhão dos passáros selvagens
e dos tucanos matutinos.



Balbuciavam no chão ignorados destinos.

A lua crescente mostrava as duas pontas de prata

por trás de um morro taciturno.


Mas, de repente 

nunca se viu clarão mais belo;

foi quando de dentro do morro
a linda manhã de penacho
saltou no cocuruto da montanha
como uma onça mosqueada de fogo amarelo
que saltasse do chão sobre o vulto de um touro
selvagem com chifres de lua.



E o sangue do sol escorreu nos cocares vermelhos

dos índios...

                                                                                                                                                     
Boré – espécie de flauta indígena.
Pocema – grito indígena
Cauim – vinho qualquer; denominação genérica das bebidas fermentadas preparadas pelos indígenas com a mandioca, o milho e com diferentes frutas. 

SONETO DA AUSENTE
 É impossível que, na furtiva claridade que te visita 
sem estrela nem lua, 
não percebas o reflexo da lâmpada 
com que te procuro pelas ruas da noite.
 É impossível que, quando choras,
 não vejas que uma das tuas lágrimas é minha. 
É impossível que,
 com o teu corpo de água jovem não adivinhes toda a minha sede. 
É impossível não sintas que a rosa desfolhada a teus pés,
 ainda há um minuto, foi jogada por mim, com a mão do vento.
 É impossível não saibas que o pássaro,
 caído em teu quarto por um vão da janela,
 era um recado do meu pensamento! 

Depois de Tudo
Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.


1º Exercício de esperança ao ar livre


(A Menotti Del Picchia)



A manhã é tão bonita

que o melhor é não ler os jornais de hoje.



Um sol em carne viva, de tão sol.

Um convite que assusta, de tão matinal,

mas irresistível.


Joga-se o cobertor como quem sai de uma flor.

Flor macia, de lã.

Só para dar um beijo, até hoje proibido,
na boca da manhã.



Numa manhã como esta

quem não se sente autorizado a tratar por você a todo

o mundo
inclusive sua Majestade britânica?
Quem?
As próprias árvores
que se haviam esquecido de dar flores
amanheceram, já floridas.
Não há uma só, que não esteja nos oferecendo
o seu ramo de flores.



Passam os meus irmãos para o trabalho.

Biblicamente.

O céu anilado e unânime
é o vestido mais novo de Nossa Senhora do Povo.



Manhã nítida.

Nítida como um caco azul de garrafa no muro.

Nítida como as três sílabas exatas
com que certo pássaro pronuncía o seu nome.
Mas, o que há de mais belo
no mundo, não é apenas
o amanhecer;
é ser possível o amanhecer; é ser possível
a gente acordar a ver que a manhã ainda existe,
que ainda cantam os pássaros.




II



E os que não viram o amanhecer? Uns dormiram

pra todo o sempre, e os outros...



Os outros o não viram

só por terem perdido a hora, e ainda estarem dormindo

numa manhã como esta.
Manhã feita com o sangue dos primeiros,
dos que morreram antes de a ter visto,
como não lhes erguer um pensamento comovido
numa manhã como esta?



Numa manhã como esta, os outros,

os que não viram o amanhecer que estamos vendo

porque só acordarão já dia alto,
devem ser, por si próprios, os castigados de Deus.
Pois, se acordam tão tarde
numa manhã como esta é por não merecê-la.



Sofro de oeste como um girassol.

E irei correndo até ao Pacífico 

para me despedir do sol.
Porém, numa manhã como esta
me dá vontade de ser pássaro. Francamente.
Me da vontade de subir a uma árvore.
Me dá vontade
de dar vivas ao sol e a República.



Me dá vontade

numa manhã como esta

de passar pelo corpo o óleo da alegria
de que fala S. Paulo, em sua epístola aos coríntios.



Me dá vontade de ir com o povo acordar os que dor-

mem 

indiferentes a uma manhã como esta.
Para que a venham ver, e a vejam 
em homenagem aos heróis que a tornaram possível. 


A festa da máquina


I



A maravilha de uma coincidência 

repete o acontecimento e lhe põe o número de ordem.

O operário é, em menor ponto, um deus
movendo a máquina do dia e da noite.
Uma roda quer dizer o infinito.
Cada engrenagem é uma frase que as outras 
engrenagens concluem.



A máquina já adquiriu qualquer coisa de humano e 

de mágico.

E já raciocina por nós; e, se é esfinge,
será uma esfinge obsequiosa.
Não nos propõe enigmas, como a sua irmã,
nem nos concede prazo para a decifração obrigatória.
Propõe coisas exatas.



II



A multiplicação, a simultaneidade

e a supressão automática do futuro

fizeram dela um ser fantástico:
um acontecimento submetido, um monstro já sem
músculos
e sem sangue.
Uma divindade dotada de coração cheio de gentileza
mecânica.
Que muita vez enxuga as nossas lágrimas,
nos põe rodas nos pés e asas ao ombro,
e nos dispensa de qualquer saudade.



Ah, eu chamarei os anjos

para que venham ver como funcionam as suas rodas,

as suas vísceras maravilhosas.
E enfeitá-la-ei com lírios
para que ela se conserve obsequiosa e tranquila.



E os números gorjearão como pássaros

nas estatísticas da alegria.



E os anjos gostarão de ouvir o gorjeio dos números.



III



Ó máquina

tu me fazes pensar, porque há um mistério

na exatidão.
O exato é, também, maravilhoso
e tão inexplicável como a multiplicação dos peixes
e das orquídeas.



Ó máquina, tu serás o mais bonito brinquedo

do homem na sua inocência conquistada.

Porque a inocência não se perde, apenas;
conquista-se também como flor última,
depois de todas as experiências e de todas
as hecatombes.



 Amor de caboclo



O caboclo na sua choupana,

à hora em que a tarde desmaia vestida de chita

está pensando naquela estrangeira bonita
que viu apanhando café na fazenda.
(Os grãos de café debulhados
pareciam rubis e esmeraldas redondas
caindo em balaios dourados)



Um par de bois vagarosos rodeia rodeia

fazendo rodar os cilindros da moenda

uns agarrados aos outros
por dentes rombudos de pau.



Passa gritando no céu sertanejo

o último pica-pau.



“Ela não é brasileira...

Ela veio outro dia

trazendo goiabas maduras
na cesta dourada.



Ela parece de tão estrangeira

uma formiga ruiva.

Mas poe ela (ele pensa)
eu era capaz de fazer uma casa
e de plantar uma goiabeira...”



E já sentia na boca

o caldo das melancias com cheiro de terra

e o gosto matutino das goiabas...


                                                                                                                                                               

*Rombudos – o mesmo que gastos.


Amor orbital


Não preciso

fugir para a Lua

numa viagem
nupcial
na noite sideral.
Ela brilha como
um fruto branco
ao alcance de minha
mão.
O amor move o sol
e “l'atre stelle”
em torno
de nós dois.
Pra que um voo
orbital?
já os teus olhos
são dois satélites
azuis
em órbita.


As 4 irmãs e o amigo



A uma ofereci um Cristo.

A outra dei um relógio

(um relógio de parede)
A terceira abre a janela.
A última recebe o amigo.
Meu amigo que não veio
e um dia virá da rua.



A primeira em cujo peito

o alvo Cristo chora sangue,

fica a minha cabeceira,
quando sofro, em duro leito.
A segunda conta as horas,
forçando-me a ser exato
entre as mais tristes demoras...
A terceira, pitoresca,
tem sobre o seio uma rosa
estampada em tinta fresca.
A última é a que recebe
o meu pão de cada dia,
o jornal, de manhã cedo;
é a que guarda o meu mistério,
e fica a porta da rua
que vai para o cemitério.



Com a primeira me confesso.

Com a segunda conto as horas.

Com a terceira olho a paisagem.
A última – é o que lhe peço – 
será noiva do meu corpo
numa viagem sem regresso.



Ó Cristo de olhar antigo,

ó minhas horas de espera,

ó flor azul da janela!
Ó minha futura noiva
que estás a porta da rua,
onde estará meu amigo?
Meu amigo que não veio?



Canto marcial



Então o guerreiro de pluma vermelha

encheu seu carcás com cem flechas de sol. 

Rataplã.


Então o herói negro saiu da senzala

levando seus chuços com pontas de adaga

para enfrentar os batavos do prol. Rataplã.


E o luso das glórias marinhas

formando a legião das três raças em cruz

encheu de chumbo e relâmpagos
o cano do seu arcabuz.
Catapruz!

  Interrogações



O terrorista não será, porventura,

um aterrorizado?

O seu terror não será uma forma
de amor?



Amor a uma ideia, a uma flâmula

e – se Jim Crow – amor a à sua cor?



Um petardo que hoje quebra o muro

não será amanhã um flor?



Deus não fustiga os pecadores com

o terror

e com o relâmpago dessa sua forma
de amor?



A bíblia do Senhor para admoestar

as suas mais-que-frágeis criaturas 

não é a do terror?


Não foi com um chicote em punho

que Deus se fez homem

(tão homem quanto (hoje) um homem
fôr)
pra expulsar os vendilhões de tem-
plo
pelo terror?
Ou pela santidade do terror?



Terrível, mas, no quadro de culpas,

a dinamite faz o terrorista 

sonhar com o prêmio Nobel
Maior terror não é o que, hoje,
paira sobre nós com a perspectiva
da destruição nuclear
num luxo
asiático
lunático?


Mãe-preta



Havia uma voz de choro

dentro da noite brasileira:

“druma yoyosinho
que a cuca já i vem;
papai foi na roça
mamãe logo vem...”



E a noite punha em cada sonho da criança

uma porção de lanterninhas de ouro.

E o dia era um bazar onde havia brinquedos
bolas de joá, penas de arara ou papagaios;
dia-palhaço oferecendo os seus tucanos de veludo
árvores-carnaval que jogavam entrudo.



Cada criança ainda em botão 

chupava ao peito de carvão de uma ama escrava

a alva espuma de um luar gostoso tão gostoso
que o pequerrucho resmungava
pisca-piscando os dois olhinhos de topázio
cheios de gozo.



Parou o bate-pé dos pretos no terreiro.

Lá fora anda a invernia assobiando assobiando,

O céu negro quebrou a lua atrás do morro.
Quem é que está gritando por socorro?



Quem é que está fazendo este rumor?

As folhas do canavial

cortam como navalhas:
por isso ao passar por elas
o vento grita de dor...



(O céu negro quebrou a lua atrás do morro).



“Druma yoyosinho

que a cuca já i vem;

papai foi na roça
mamãe logo vem...”



                                                                                                                                                            * Entrudo – os três dias que precedem a entrada da Quaresma.



 Mar da China


Uma espada

que do palácio

de um rei de ouros
foi jogada
ao mar.
Foi jogada ao mar.



E a metamorfose:

um peixe-espada,

um espadarte
um objeto de arte.
Um objeto
de arte
na mão do rei
de espadas.



Com que arte

vibra agora o mar

 a sua espada.
A sua
espada
já multiplicada
entre os demais
peixes.
Entre as demais
espadas.



No noturno lutar

contra si mesmo

antigo pirata
hoje rei de espadas
homem-rã de prata
chim espadachim
com os seus espad'
artes.



Entre feixes de

peixes.

Espada contra espada 
chim contra chim.
Luta por um reino?
por uma rainha?
Por nada.
Luta consigo mesmo
sem nenhum fim.



A espada do rei

de ouros

na mão do rei
de espadas.



Multiplicação dos peixes



Súbito

uma rede de pescador e toda uma popula-

ção piscosa
pu-lula entre o xadrez da malha
e o das escamas, numa só escumalha.



Nunca tanto xis de tanto peixe.



Um deles, com a cauda em repuxo,

se conserva vivo por mais tempo, ao sol.



Vivia, há um minuto,

dentro d'água.



Movendo-se



livre e belo



(e esse minuto trêmulo ainda lhe cin-

tila

no dorso, ainda molhado).


Natureza morta



Parou o relógio, os peixes

flutuaram mortos, foi o sol

que caiu na praça pública.
Temos, todos, a mão molhada
no rio rubro do destino.
O homem acontece
cada vez mais, e o acontecimento
sorri, sobre as patas de bronze
como um elefante cor de cinza
sobre campo blau.



O mal-me-quer floriu na boca

do terror e agora os pássaros,

de asa cortada, começaram
a andar sobre o mesmo horizonte
onde deslizam as serpentes.
O fruto do silêncio pende da árvore.
As borboletas foram abolidas.
Rosa secreta e quente, a vida.
Mas parou o relógio, súbito.
Não se ouve, sequer, a flauta
que resumia as lágrimas das coisas.
Pã arrasta o cadáver de Sírinx
no mundo da metamorfose.  


O homem que brigou com as palavras


Já não há razão para o ódio

num universo em que cada vez são maiores

os motivos de amor.
Amor que é solidariedade diante do fim próximo.



Mas não adianta jogar flores

sobre uma determinação terrível com a sua.

Intratável, a barba áspera deu-lhe o aspecto
de um deus vivo arrancado a uma cruz viva.



Talvez que o ato que o feriu pudesse ser esclarecido.

Mas ele não aceita explicação alguma.

Agora, nem um anjo o convence.


Nem a filha. Nem a esposa amorosa.

Pois ele é um ressentido e, antes de tudo,

o ressentido é um homem que brigou com as palavras. 

O homem que foi diabo

I
Então o andarilho de botas
que andava no sertão com barracas de lona
(cidades tão redondas e tão claras
como dias de cal pelas lombas das grotas)
fora cercado pelos índios
com cocares azuis de arara
ou capacetes verdes de papagaios,
e tangas com peles de onça.

Em vão lhes pediu que contassem
de onde provinham os sinais de outro escondido
na argila amorosa e clara.

Caía a noite como se um tição
esparramasse uma porção de brasas vivas
no côncavo do silêncio taciturno
como as fagulhas que as locomotivas
jogam num túnel...

O mistério passeava os olhos na tocaia
maracajá rajado pronto para dar pulos
em quem passasse distraído junto às moitas
de samambaia.

Os índios cada vez mais numerosos
em atitude ameaçadora, em bárbaro alarido
se agrupavam em torno; um deles, quase nu,
esticou o seu arco e fincou uma flecha
no peito de um jacu.

Nunca o paulista
sentiu a solidão tão cheia de esmeraldas!

                                                                                                                                                               
Maracajá – mamífero carnívoro da família dos felídeos, espécie de gato-do-mato.



II

“Ó filhos do mato, ó selvagens

coroados de penas verdes!
Eu sou o filho do fogo
que tenho castelos de lua
possuo cidades de sol:
a forja das madrugadas
é a palma da minha mão;
sou eu quem governa o trovão...
Sou eu, pelas grutas de breu,
quem abre a porta do dia;
quem passa de noite ao longe
montando o cavalo de vento
chicoteado de relâmpagos
sou eu.”



“Não me quereis indicar

o ouro que o chão revelou.

Pois bem; para mostrar-vos quem sou
eu vou lançar sobre vós
todo esse fogo que há no céu:
sereis neste instante queimados
na chama do meu fogaréu...”



Foi quando o guerreiro vestido de couro

arremessou um clarão mais violento que o dia,

que pareceu um relâmpago de ouro 
sobre a fogueira encarnada que o vento lambia.



Um grito de encanto ou de espanto abalou o sertão



(o fogo estralava na brasa das achas acesas;

o fogaréu das estrelas

pôs brasas azuis pelo céu de carvão).
E todos os índios, tomados de assombro
caíram, com a face e com os joelhos no chão
a gritar por quem era...
Anhanguera!
Anhanguera!


O suspeito
Essa entrada foi feita só para você

KAFKA, “A porta da Lei”



I

Seu crime é haver um outro crime,

cometido por outro que, ó coincidência,
lhe tem o mesmo nome.
As hipóteses são irmãs do infinito.
Detido, não soube explicar-se de pronto.
Por mal saber a nossa língua, e mesmo
porque as palavras pouco explicam, à hora
dos equívocos.
A mais difícil prova é a da inocência.



O cadáver da moça, a encaixotada morta,

loura – tão loura quanto hermética – 

foi encontrado no navio, e já em pleno leito
de safira?
E ei-lo detido, por suspeito.



Quem conseguiu, com a mão de pluma, sub-reptícia, 

colocar um petardo – não se sabe ainda como – 

sob a tribuna em flor das comemorações?
E justamente à hora do desfile?
Um alguém tão secreto que é Ninguém.



Ele é esse Ninguém.

Esse Ninguém que tanto pode ser o autor de todas as

coisas criadas por Deus
como não ser autor de nada, inocente.
Que tanto pode ter um olho só, na testa,
à feição de cíclope (ou ser o rei de Ítaca)
como ter muitos olhos, e por todo o corpo, à maneira 
do sol,
pelo vão das folhas.
Ou ser, apenas, um dos quatro animais que rodeiam
o trono
de Jeová, no Apocalipse.



II

Não é a ele, evidentemente, que se dirigem  

os dez mandamentos.
(Não furtarás, não matarás, não cobiçarás
a mulher do teu próximo...)
Porque é ele a terceira pessoa.
Eu cometo os meus crimes, tu os teus,
mas, à hora da suspeita, à hora gramatical da culpa
só existe a terceira pessoa.



O que, vítima de um primeiro equívoco policial,

jamais conseguirá ser inocente.

O tocador de clarineta


Quando ouvires o pássaro

cantar em frente do teu quarto,

naturalmente em vão,
não penses
que sou eu que aí vim tocar,
não.
Quando o vento disser,
ao teu ouvido de mulher,
uma palavra
branca e fria como a cerração,
não penses que o vento fui eu,
não.



Quando receberes

uma carta anônima, trazida

por secreta mão
– quem será que assim me acusa? –
eu é que não serei,
não.



Quando ouvires, porém, no escuro,

a goteira caindo

sobre o triste chão, aí, então,
serei eu que estou batendo
na pedra
do teu coração.


Os olhos da fotografia


Ela perdeu na guerra o filho

mas guardou-lhe a fotografia

olhando de frente.
Guardou, principalmente,
os olhos da fotografia
por onde o morto olha de frente
(depois de tanta luta)
o mundo em que vivemos.



Todo morto é mais sincero

do que quando vestido de palavras.

A vida é, quase sempre,
uma falsificação das coisas.
Assim, o da fotografia 
cuja malícia é olhar de frente
(depois de tanta luta)
adquiriu uma maior verdade.
Maior, depois de fria.
A ausência da fala humana
lhe dá o prestígio da sinceridade
absoluta.
Os olhos da fotografia seguem-na,
de frente – 
olhos por onde o morto espia
insistentemente 
a sua mãe e o mapa-mundi.


Pequeno Canto Ex-Ótico


Chorar não basta 

pra dignificar

a tristeza.


Já não cabe 

a tristeza, no caos

de agora. 
O encanto ótico
tornou o pranto ex-
ótico.



Um coice 

de cavalo

no comício, ao
invés de fazer
brotar a fonte,
no monte,
me fez secar
a fonte
da mágoa.



O aterrorizado não 

chora.



É um ser em quem

a lágrima,

dura como diamante,
não molha;
risca
o vidro dos olhos.



Lágrima?

Só a do minuto

no olho do relógio. 


Lágrima?

Só a da sílaba

no poema.


Lágrima?

Só a gota de suor

na fronte.


Lágrima?

Coisa íntima

e ínfima
diante do espeté-
culo.


Rosaúna



O sonho de Rosaúna

era cantar como um pássaro

numa estação de rádio.


O sonho de Rosaúna

era ter cabelo liso,

não louro pra não ser falso.


O sonho de Rosaúna

mais do que qualquer riqueza

era ser noiva de branco.


Rosaúna, irmã da Noite...

mas a quem cabia a culpa

mais celeste do que sua?


Eu mamei leite de escrava

mas Rosaúna era livre

como um voo de andorinha.
Se houvesse democracia
quisera o meu pensamento
livre como Rosaúna...




Sol de Metal
        A Fabio Lucas
  
1


Uma lua se automovendo

no alto do edifício.



A deusa da propaganda.

O transeunte,

um animal lírico-visual.


O anúncio cai da noite

pelo vão de seus olhos.

Como o fruto aceso
de uma árvore de natal.



O transeunte 

foi feito para ver

(e se convencer)


Mas quem vê a face 

do anúncio

não lhe vê a outra face
da lua.
O sol de metal que está
atrás do anúncio.



A máquina

que é um dédalo de dedos.

Ou de dedos sem dedal.
Carretéis.
A fábrica
“N. Sª
da Anunciação.”



2



Uma peça se automovendo

mas centenas de outras 

se automovendo antes dela
atrás do anúncio.



A lógica terrível

em que as peças se engre-

nam


umas concluindo 

o que as outras dizem,

atrás do anúncio.
Mas que será que as outras 
dizem,
atrás do anúncio.



O suor sujo escorrendo

em vogais de óleo

(atrás do anúncio) do rosto
do operário na mão
de N. Sª
da Anunciação



(Atrás do anúncio) como 

um pré (a) núncio.



3



A manhã dátilo-rosa 

o estridente trinado

datilográfico
no arranhacéu de vidro
o comércio gorjeando
nas ruas



a greve o comício 

as lágrimas

a gás lacrimogênio
o operário núncio
de um mundo só
os produtos em série
em procissão uns atrás
de outros ao fim
da paisagem em viagem
afinal a noite a grande
noite industrial
cercada de letreiros
resplandecentes
sol de metal a lua
se automobilando
no alto do edifício 
ela mesma a noite uma
Nossa Senhora 
da Anunciação.



Ou do Anúncio?  

Viagem para me esconder



Queimei a última fotografia

pra não deixar sequer um traço

do meu rosto por onde, a cada passo
me descobrissem na cidade estranha.



Destruí, em pedaços bem miúdos 

a última carta do meu punho

como quem desfizesse um testemunho
comprometedor, a hora da viagem.



Rasguei meu último soneto

não por mim, mas por causa do estilo.

Para poder, depois, viver tranquilo.


Guardei o meu maior segredo numa furna.

Boca noturna,

quieta, quieta, sem nenhuma palavra.


A lanterna mágica

E foi
tão grande o seu desespero
na encruzilhada 
e a noite era tão escura
na floresta e nos campos,
que o próprio Currupira
ficou com pena
e lhe arranjou uma lanterna
de pirilampos.

“Pouco importa
que a noite seja escura,
porque foi apanhar água
no ribeirão
e quebrou seu pote branco
numa pedra do barranco
fazendo esta escuridão.

Vá por aqui, direitinho,
com esta lanterna
na mão, alumiando o caminho...
e você encontrará o que procura!”

E ele saiu pelo sertão,
procurando o Sol da Terra
com uma lanterna de pirilampos 
na mão.


Sob um guarda-chuva
   
As luzes caíram trêmulas, na calçada.
E escorrem líquidas.

São luzes de todas as cores,
em pequenos naufrágios sobre o asfalto.

Se eu pudesse gemer como este vento,
como diria o poeta. . . 
E abro o pequeno céu com asa de morcego
mas chove em mim pelo vão de uma estrela.

A chuva me dá, sempre, uma sensação de raiz.
Tenho a impressão de estar coberto
de folhas verdes, espirrando água.
O mar estronda, carregado de prata
e peixes.
E eu logo penso em meu pai, lavrador.
Roupa cheirando chuva, o cabelo escorrido na testa.
Os sapatos no barro.
A chuva, para ele, era uma festa com arco-íris
ou sem arco-íris.

Pássaro branco sob o guarda-chuva
em exercício de ficar parado
sinto-me preso entre os quatro pontos cardeais
desta esquina pingando horas.
Nada mais falso do que um boletim meteorológico.

Ganhou da lua e da minha esperança.
Onde estarão os pequeninos barcos de papel de minha infância?
Estarão jogados, como objetos já sem uso
no cemitério dos navios mortos?

Penso na seca do Nordeste
no país das fatalidades cíclicas e dos contrastes
entre a rosa do sol e o Dilúvio.
A rosa do sol escondida no abismo do mapa
inteiramente cor de cinza.
A sensação da ausência, a árvore da chuva
desfeita em galhos torrenciais.
E eu, aqui, a afogar-me em água e, lá, o Nordeste de rosto enxuto.


2
O céu me atrai, porém a terra — com este cheiro 
de chuva —
me dá uma sensação de raiz.

A terra pode mais que o céu, quando a chuva
me molha a memória, me fecunda,
e eu sinto peixes e orquídeas no corpo.
Mas enquanto a chuva cai, torrencial,
e o vento a arrasta pelos cabelos de prata,
fico pensando, sob o meu guarda-chuva.

Penso que é absurdo comparar com a chuva
as nossas lágrimas (isso é demais, ó poeta).
Lágrimas quentes, que nos queimam os olhos,
e caem por dentro sobre ocultas feridas,
com este choro sem sal.

Além disso, os problemas municipais já esquecidos
e os nacionais, também, renascem, sob a chuva.
Os automóveis gritam, pedindo passagem,
uns roucos, outros tocando um começo de música.
Discutem prefeitura e tarde escura
a eterna questão do trânsito.
Um trovão quis contar-me um violento segredo
mas soletrou, apenas. Que monstruosa verdade
não terá ele pretendido dizer-me?

3
Deus rabiscou no espaço uma palavra de fogo
que não pude entender, por não saber hebraico,
mas que deve estar escrita em alguma passagem da Bíblia.
Onde terá caído esta faísca elétrica?

O que vale, pra mim, é que a casinha pequenina
onde nasceu o nosso amor, tem um coqueiro ao lado.

E se Franklin inventou pára-raios de luxo
para os arranha-céus, Deus botou um coqueiro
para servir de pára-raios junto à casa do pobre.

Dia sem céu.
(Nisto um transeunte

saiu correndo, atrás do seu chapéu)

Trem da noroeste

Olhos oblíquos,
pestanas ruivas;
é o homem bíblico
multiplicado
pelo futuro
pelo presente
pelo passado.
E a terra enigma
modela o outro
(ainda criança
que há dentro dele)
à sua imagem
e semelhança.
Porque ele mesmo
cortado ao meio,
ficou lá longe
e entre o que veio
e o que não veio
o azul-atlântico
lava a memória
do que não veio.
Rostos em viagem.
Rostos em série.
Baralho humano.
Novas trombetas
de Jericó.
A hora futura
que Deus escreve
por linhas tortas
no mural rude
da manhã clara,
imprime aos rostos
judeus, lituanos,
sírios e russos
o ensaio vivo
de um mundo só.
Nisto o trem pára.
Que face é aquela
que se debruça
numa janela?

É a face do outro?


Poemas do Poeta Cassiano Ricardo extraído do site da Fundação Cultural Cassiano Ricardo
http://www.fccr.org.br/index.php/institucional/151-cassiano-ricardo/575-livro-09

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